FIRE Jovem - Dólar e Inflação, uma breve análise

4 de março de 2022

 Olá, caros leitores. Ontem, logo antes de dormir, passou por minha cabeça um desses pensamentos que deixam um ponto de interrogação e não vão embora até que a dúvida seja finalmente respondida: "afinal, qual é a relação  entre dólar e inflação?". E, sim, eu sei, há uma óbvia correlação entre dólar e inflação, uma vez que boa parte dos bens de consumo e commodities são dolarizados. Mas a minha dúvida era um pouco mais profunda: será que essa relação direta aventada pela mídia, por políticos e pelos educadores financeiros se observa nos dados?


FIRE Jovem - dólar e inflação 2022

Como bom curioso que sou, não deixei o cansaço do horário ou a interessante prova do líder do BBB22 atrapalharem minha missão: sentei-me na cadeira e me pus a coletar dados para responder o questionamento que brotou na minha cabeça. Assim, coletei os dados nas seguintes fontes:


1. Variação Mensal do Dólar de Fevereiro/2000 até Fevereiro de 2022 - Investing.com

2. Variação Mensal do IPCA de Fevereiro/2000 até Fevereiro de 2022 - Séries Históricas do IBGE


Com os dados em mãos e usando o bom e velho Excel obtive alguns dados estatísticos para resumir as amostras (aqui inclui também o INPC a título de comparação):


Tabela 1  - Resumo Estatístico da Variação Mensal do Dólar, IPCA e INPC de fev/2000 a fev/2022



Como mostram os dados, apesar das três variáveis apresentarem média aritmética em torno de 0,50% para a variação mensal, fica claro que as variações do dólar são muito mais intensas do que os índices IPCA e INPC. Isso é fácil de notar ao comparar os desvios padrão (+- 5,09% para o dólar vs. 0,39% e 0,45% para IPCA e INPC, respectivamente) e também os valores de retorno máximo e mínimo na das amostras, enquanto o IPCA variou de -0,38% a 3,02% o dólar variou de -13,47% a 25,02%.


Mas até aqui não temos nada de novo sob o sol, é de se esperar que um índice como o IPCA que faz uma média ponderada dos preços de inúmeras categorias e em todas as regiões do Brasil tenha uma variação mensal de preços mais comportada do que a relação entre dólar e real. Outro ponto interessante desta primeira tabela é que o IPCA e o INPC quase sempre possuem variações positivas (ou seja, o real perdendo poder de compra), em apenas 9 dos 262 meses da amostra o IPCA apresentou um comportamento deflacionário, ao passo que o dólar apresentou variações negativas em quase metade dos meses (128 negativo x 135 positivo).


Ok, mas ainda não respondemos à fatídica pergunta que me tirou do conforto da cama às 22:30 de uma quinta-feira pós-carnaval, a relação entre dólar e inflação (medida pelo IPCA), se observa nos dados? Para respondê-la fiz o que qualquer iniciante em estatística faria: calculei a correlação entre os retornos mensais do dólar, do IPCA e do INPC no período de fevereiro de 2000 até fevereiro de 2022. Para a minha surpresa os valores que obtive foram os seguintes:


Tabela 2  - Correlação entre Dólar (USD), IPCA e INPC de 2000 a 2022



Comecemos pelo óbvio: a correlação entre IPCA e INPC no período foi bastante alta, chegando a 0,95 e com R² de 0,91. Isso quer dizer que o IPCA e INPC são muito correlacionados (0,95) e que as variações mensais do IPCA (ou do INPC) explicam 91% das variações mensais do INPC (ou IPCA), conforme medido pelo R². Este resultado é perfeitamente esperado, uma vez que o INPC e IPCA são muito semelhantes, a diferença é que o INPC mede a inflação da população com até 5 salários mínimos e o IPCA mede a inflação para toda população, mas a metodologia usada é a mesma. Portanto aqui não temos nenhuma surpresa.


A verdadeira surpresa vem quando comparamos a correlação do retorno mensal do dólar com relação à ao IPCA ou INPC. Como vemos na Tabela 2, a correlação não só é praticamente nula (-0,02), como também tende a ser negativa. Também é interessante notar que o R² é praticamente 0, ou seja, a variação do dólar em um dado mês é completamente descorrelacionado com a variação da inflação naquele mesmo mês. "Esse moleque fez cagada" pensarão uns, "Errou a fórmula no Excel", pensarão outros, mas não, eu chequei mais de uma vez e posso explicar o que está acontecendo aqui.


Se você é um leitor perspicaz, deve ter notado que no último parágrafo deixei uma frase destacada: "naquele mesmo mês". E este é o ponto principal aqui. Nesta primeira análise estou comparando a correlação do dólar com a inflação em um mesmo mês, é como se eu estivesse relacionando a variação do dólar hoje com a inflação que mediremos no fim do mês e isso não faz muito sentido, porque demora um tempo para a variação do dólar impactar nos preços dos itens de consumo. Ou seja, existe um atraso entre a variação do dólar e a variação da inflação. E foi justamente isso que passou pela minha cabeça antes de eu julgar que estava errando nos cálculos.


Para entender como a variação do preço do dólar afeta a inflação nos meses seguintes eu usei a seguinte metodologia: 


1. Estabeleci prazos de 1, 3, 6, 9 e 12 meses e calculei a média geométrica da variação do dólar no período anterior ao mês analisado. Por exemplo, para o prazo de 3 meses em março de 2001 eu calculei o retorno médio do dólar indo de janeiro de 2001 até março de 2001, este mesmo procedimento foi feito para os demais períodos levando em conta o horizonte analisado.


2. Para o IPCA eu fiz a mesma coisa, usando os prazos de 1, 3, 6, 9 e 12 meses, mas desta vez o cálculo foi feito com base nos meses posteriores, justamente porque queremos entender a variação posterior do IPCA com uma variação anterior do dólar. Por exemplo, para o prazo de 3 meses em março de 2001 foi calculada a média geométrica das variações do IPCA de março de 2001 até maio de 2001.


Realizados os cálculos, foram obtidas algumas séries de dados com a variação média anterior do dólar (em períodos de 1 a 12 meses) e a variação média posterior do IPCA (em períodos de 1 a 12 meses). Por exemplo, para o mês de junho de 2001 foram obtidos 5 medidas de variação para o dólar referentes aos prazos de 1, 3, 6, 9 e 12 meses anteriores e 5 medidas referentes ao IPCA referentes aos prazos de 1, 3, 6, 9 e 12 meses posteriores. Com esses novos dados, recalculei as correlações entre os retornos mensais. Na Tabela 3 a seguir a denominação USD (3) indica a análise feita com base na média de variação do dólar dos 3 meses anteriores, da mesma forma que IPCA (9) indica os cálculos referentes à variação dos 9 meses posteriores do IPCA.


Tabela 3 - Correlação entre dólar e IPCA para a média geométrica da variação em períodos de 1, 3, 6, 9 e 12 meses (anteriores para o dólar e posteriores para o IPCA)



Aqui vemos que a coisa mudou de figura. Continuamos a observar o padrão de correlação baixíssima para um mesmo mês [correlação de -0,02 para IPCA(1) vs USD (1)], no entanto conforme estendemos o período de análise para 6 a 12 meses, a correlação tende a aumentar, chegando ao pico de 0,42 ao correlacionar as variações dos 9 meses anteriores do dólar [USD (9)] com as variações dos 6 meses seguintes do IPCA [IPCA (6)]. Ou seja, a hipótese de que a inflação é uma medida atrasada com relação à variação do dólar parece se confirmar nos resultados apresentados na Tabela 3, uma vez que para períodos posteriores mais longos (IPCA 9 ou IPCA 12), as correlações tendem a aumentar.


Conforme as cores na Tabela mostram, quanto mais longo o período usado para o retorno do dólar, melhores aparentam ser as correlações, chegando a um limite nos 9 meses anteriores (não parece haver aumento na correlação passando de 9 para 12 meses). Para o IPCA vemos a mesma tendência, quanto maior o período posteriors analisado, melhor a correlação, chegando a um limite em 9 meses. Ainda sobre esta análise, deixo a seguir o R² obtido para cada uma das comparações:


Tabela 4 - R² entre dólar e IPCA para a média geométrica da variação em períodos de 1, 3, 6, 9 e 12 meses (anteriores para o dólar e posteriores para o IPCA)


Como podem ver, o melhor R² foi de 0,18 obtido para IPCA (6) com USD (9). Isso quer dizer que a média de retornos dos últimos 6 meses do dólar explica cerca de 18% da variação do IPCA nos 9 meses seguintes. Como o R² é o quadrado do coeficiente de correlação, a relação que vemos aqui é basicamente a mesma observada na Tabela anterior: praticamente não há poder de explicação entre dólar e IPCA para prazos curtos, a há uma tendência de melhorar a correlação e a explicação da variação dos retornos para prazos mais longos, chegando a um limite em 9 meses (usar prazos maiores que 9 meses aparentemente não melhoram o poder explicativo do R²).

Apesar de longe de ser um cientista, creio que devemos incluir em nossos estudos um pouco do rigor científico, por mais que as perguntas a serem respondidas sejam meio óbvias. Assim, imaginei que um leitor teimoso ou um aluno interessado me fizessem a seguinte pergunta: "mas quem disse que é o dólar que influência na inflação e não o contrário?". Como eu poderia obter essa resposta com os dados que tenho em mãos?

Para responder a esta última (e talvez menos importante) questão eu fiz a mesma análise descrita anteriormente, mas dessa vez usei períodos de 1 a 12 meses para calcular o retorno médio anterior do IPCA e os mesmos períodos de 1 a 12 meses para calcular o retorno médio posterior do dólar. Com isso estaremos analisando como a variação anterior do IPCA pode prever a posterior variação do dólar (basicamente mudando a relação de causa-efeito usada anteriormente). A Tabela 5 a seguir apresenta os valores de R² obtidos para esta análise:


Tabela 5 - R² entre dólar e IPCA para a média geométrica da variação em períodos de 1, 3, 6, 9 e 12 meses (anteriores para o dólar e posteriores para o IPCA).



Como mostra a Tabela, o poder de explicação das variações anteriores do IPCA para explicar os retornos posteriores do dólar é praticamente nula, sendo o maior valor de apenas 0,03 (USD 6 com IPCA 1). Com base nestes dados podemos confirmar que o poder preditivo do IPCA com relação ao dólar é praticamente nulo e que a relação correta de causa e efeito é o dólar influenciando o IPCA (conforme mostraram os dados nas Tabelas 3 e 4).

Por fim, é importante dizer que mesmo o maior valor de R² (0,18) obtido neste estudo ainda é considerado baixo para explicação da variação da inflação, o que dá a entender que existem outros fatores que ajudam a explicar as variações do IPCA, sendo o dólar apenas um deles (e fracamente correlacionado).

É isso, queridos, espero que este post seja útil, deu um trabalhinho pra escrever mas confesso que foi prazeroso. 

Abraços

FIRE Jovem





3 comentários:

  1. Estudo muito interessante.

    O dólar parece em uma tendência de queda nesse começo de ano, o que pela lógica deve repercutir na inflação no segundo semestre, com a inflação mais baixa seria provável que o BC decidisse reduzir a SELIC para estimular a economia, mas será que ele teria essa disposição de ir contra a corrente, tendo em vista que o FED estará subindo os juros americanos?

    Fica de sugestão para um próximo post, estudar a relação entre os motivos da SELIC e a cotação do dólar.

    Abraços,
    Pi

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. * entre os movimentos da SELIC e a cotação do dólar.

      Excluir
    2. Opa, fala PI, ótimo vê-lo por aqui!

      Sim, faz sentido que o dólar caindo (com a mais que provável influência da alta de juros) a inflação deva dar uma freada no segundo semestre, imagino que essa seja a tendência. Mas como o estudo mostrou, a relação entre dólar e inflação é relativamente baixa, sendo o R² máximo encontrado de apenas 0,18. Imagino que a relação da SELIC com a inflação e dólar seja mais forte (e uma relação negativa imagino).

      Obrigado pela sugestão, está anotada!

      Excluir



FIRE Jovem - Os Fundos de Gestão Ativa Brasileiros batem o Mercado? O Veredito - Parte III

  Olá, caros leitores, antes de mais nada peço que, caso não tenham visto, leiam os posts anteriores desta série. É importante lê-los para q...

Topo